sexta-feira, 25 de junho de 2010

e assim eu caminho...

Salman Rushdie

Ali ninguém sabia da sua vida secreta com as palavras. E ela conseguiu habituar-se à ideia de não mais perder-se em histórias inventadas no fundo de um ecrã e entranhadas em músicas doridas. Encontrou silêncio e uma paz repentina. Ali todos lhe acenavam os bons dias: o segurança oferecia-lhe cerejas todas as manhãs e o engenheiro mais simpático dava-lhe boleia para casa ao final da tarde. Ali pôde aprender a ser a feliz em gestos simples. Deixou de escrever, abandonou-se à rotina e depressa esqueceu os sentimentos. Ali matou amores que pareciam durar para sempre e arrumou o coração bem arrumado. Ainda tentou lembrar-se de acontecer mas só encontrou nevoeiro do outro lado do espelho. Ali talvez se tenha apagado. Ou então deixou cair a máscara - sem querer - e revelou toda a sua consumição sem pensar duas vezes. Ali os rostos mudavam de expressão a cada novo olhar e ela percorria os mesmos caminhos sem grandes perguntas, respostas ou inquietações. No embalo das horas, os dias eram iguais. E isso era bom. A começar pelo fim, apeteceu-lhe nunca mais voltar ao início. Deixou de dançar. Depois as circunstâncias fizeram o resto: anestesiaram-na de tal maneira que ela não olhou mais para trás. E assim nunca mais esperou o herói que nunca chegava.
(retirado do blog A danca dos Erros)

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